quinta-feira, 17 de março de 2011

Cavaco e a Guerra do Ultramar.

Afinal também tivemos o nosso tsunami. Cavaco Silva, e ao ler um discurso para uma plateia de antigos combatentes, resolveu falar do presente "enrascado" que temos e decidiu dar como exemplo aos jovens de hoje os de ontem que "assumiram" a Guerra do Ultramar com "coragem", com "desprendimento" e com "determinação".
As reacções têm sido as mais desencontradas, e quase todas descabeladas. Um só dos entrevistados que li me pareceu razoável, ao lembrar que o "desprendimento" elogiado foi maioritariamente... obrigado! A maior parte dos jovens que foram combater para África, se pudessem ter escolhido não tinham ido! As imagens que eu lembro das famosas mensagens natalícias não eram de desprendimento, eram de rapazes metidos numa coisa em forma de guerra a milhares de quilómetros de casa, sendo que para muitos deles já uma ida a Lisboa era complicada, quanto mais... Coragem houve-a porque alternativa não havia, desprendimento sim, também, porque o regime mandou. Determinação também, em sobreviver àquela merda e tentar voltar inteiro para os seus, os a quem se desejava, com a lágrima ao canto do olho um "Ano Novo cheio de muitas propriedades!" Ah, o capitalismo selvagem já então à espreita...
Cavaco Silva, oficial miliciano em Lourenço Marques de 62 a 65, falou para uma plateia especial, mas sabia que tinha o país a ouvi-lo. Escolheu mal as palavras. Falta-lhe a espessura, a largueza de ombros e de carácter para abranger num discurso, menos ainda no seu olhar de português primeiro - que, infelizmente, o é - o que foi a Guerra do Ultramar. Não uma vergonha para o País, longe disso, mas uma página mais numa História que mais do que uma vez foi sede de um ou mais delírios. A Guerra do Ultramar talvez tenha sido o penúltimo dos nossos delírios, o último antagonicamente o PREC. Falta determinar se a nossa caminhada europeia para a prosperidade suiça, hoje em coitus interruptus, também preenche critérios para, ou não.
Voltando ao Ultramar, nem um olhar poliédrico poderá eventualmente abarcar todos os aspectos da Guerra. Uma nação pobre que o não quer ser e por isso defende os anéis. Que não seriam seus para começar, achados numa "rua da História" quatro séculos atrás... Uma nação missionária perdida no tempo em que as missões acabaram. Jovens quase analfabetos atirados para um continente estranho e um mato onde vão ter que matar para não morrer. Umas forças armadas mal armadas mas que aguentam três frentes e não desistem e até ganham. Mas onde estão os tais jovens oficiais que irão fazer o 25 de Abril. Um colonialismo brando (mas colonialismo), ocasionalmente feroz, vidé a reportagem recente sobre a revolta de 61 dos bacongos em Angola e a resposta dos colonos sem lei, ou o massacre de Wiriamu.
Outras coisas lembro: que um dois anos antes do 25 de Abril, a RTP ainda "chamava" gente para o vale do Zambeze, "terra de futuro"... E lembro-me também dos colegas do 5º ano (então 1º ano do Ciclo Preparatório) que em 75 recebi de Angola e de Moçambique, seus traumas, seus dramas. Alguns hoje meus amigos ainda. Tanta história por fazer, certamente. Onde a palavra "coragem" serve e bem, embora com nuances. Mas "desprendimento" não, nunca.
Ó Cavaco, cala-te, pois não sabes do que falas!

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