domingo, 1 de maio de 2011

Uma deslocalização aqui ao lado aconteceu.

Anteontem mudaram a um amigo meu de local de trabalho. Correntes subterrâneas já o tinham avisado do que ia acontecer, mas a conversa correcta da entidade patronal foi havida, se não me engano, com apenas 24 horas de antecedência. O mero facto de ter mais de trinta anos de “casa” não contou para nada. Do enredo não sei o molho de grelos. Sei o desfecho. E chega.

“Casa”. Tenho menos tempo de profissão do que este meu amigo. Levo porém bem mais de vinte aninhos disto de trabalhar. Parece que hoje em dia ninguém quer que nos sintamos “em casa” no sítio onde trabalhamos. Embora o contrário seja dito e redito, naquelas conversas parvas motivacionais que nos impingem por trimestre. Mas esta é a arte dos dias de hoje, dizer uma coisa quando precisamente a mensagem a reter é o oposto. A honestidade, a verticalidade, o olhar franco e descomprometido, não são as cartas que se jogam nestes dias. O objectivo é que o trabalho, o emprego, seja visto como um favor que nos fazem, “anda lá, eu deixo que tu trabalhes…”, a pedir o máximo esforço, mês a mês, os tais “objectivos”, sendo a renda mensal, gerida da forma mais liberal, ie, selvagem possível, não se sabendo quanto arrendamento no mês seguinte, que ónus, que preço, data sequer de pagamento. E querem que assumamos isto como "a nossa casa"! Não sei se afinal esta coisa de 75-76 nos fez assim tão bem porque fugaz, no que às teias de aranha diz respeito – claro que do 25 de Abril não falo. Nesses anos longínquos, mandar era o pecado dos pecados, algo que, a acontecer obrigava a reiterados pedidos de desculpa. Hoje, 2011, só existe quem manda. Os mandados são uma classe inferior, rasteira, que será obviamente culpada – sabe-se lá porquê, mas, também, não interessa – da sua condição de obedecedores. O “porque quero” ultrapassou já em muito o já de si péssimo “porque sim”. Explicar a razão de um procedimento, essa fastidiosa operação mental, já passou à história. Se os mandados tivessem um cérebro privilegiado como os que mandam, não questionavam o porquê das coisas, já sabiam! Mas não. Não têm, por isso são o que são. E aliás, discute-se a existência de sistema nervoso central neles, o periférico – leiam o nome… - ainda vá que não vá, deve haver, parece que sentem dor quando muito pisados…

 
Comecei a trabalhar num oitavo piso de uma Unidade Hospitalar, sendo a minha profissão o que sabeis que é. Trabalhei lá, com o intervalo de um serviço militar de doze meses e um que outro estágio, doze anos e meio. Ali me fiz o que sou, a tantos níveis que se torna extenso referi-los, hoje. E digo hoje 2011. Ali sim, tive uma “casa”, e que casa. Amei e perdi, lutei e venci. Criei e desfiz as minhas garras. Forrei as minhas paredes de instantâneos de puro prazer, rotinei e parti os dedos. Aprendi a correr desarvorado e a parar meses. Aprendi a rara cura e que quase tudo – mas não tudo – podemos melhorar. As minhas palavras – vocês sabem quais são – ali ganharam o definitivo corpo. E o mais importante, ali aprendi a rir, a rir-me de tudo e a fazer rir, melhor combustível não existe. Até hoje. Tive os meus mestres, aqui aproveito e agradeço. Piso 8, Medicina 3.

E em 2001 descemos para o piso 4. E foi sem espiga. Porquê? Não usei o plural por convenção no início. Desci eu, e quem comigo trabalhava nesses dias, equipa perfeita. Sim, agora de outra casa falo. E talvez esta seja a mais importante. A casa que de pessoas é feita, por isso o descer do piso oito ao quatro não se tenha revestido de especial importância naqueles tempos. A nossa casa pode também ser com quem estamos – e no trabalho melhor não pode ser se estamos bem. Na prática, ao descer em 2001 para o piso quatro mais não se fez do que continuar a seguir à risca o livro de boas práticas que do piso oito se trouxe. A casa desceu. Connosco.

Se bem eu "li" o que aconteceu esta sexta-feira, a “casa” onde o meu amigo trabalhava até à passada sexta-feira perdeu – com ele – mais do que uma parede-mestra, perdeu uma daquelas janelas que para o mundo é imperativo que haja e que abertas estejam, para que sempre e a cada minuto se saiba que há mais mundo do que aquele ali cubiculado que faz de nós toupeiras. E não há quem compreenda isto!

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