terça-feira, 11 de maio de 2010

naquele tempo

naquele tempo abril era de noite
e a noite encadernava-me o corpo a alma e os dias
numa escuridão armada de silêncios desconhecidos e longínquos

e enquanto os pirilampos afogueados por notícias aos relâmpagos
e por boatos tracejados na bruma
escreviam cartas aos meus medos espantados
a noite teimava em ser ainda noite

naquele abril eu tinha áfrica nos meus olhos que eram noite
tinha rios espessos e castanhos nas minhas mãos que eram noite
e tinha tinta cor de telha
nas letras esguias dos meus poemas que eram noite

mas algo se passava dentro da terra toda
algo esvoaçava no sussurro brusco da folhagem da carne

então? perguntavam-me
não sei não sei
é de noite e não sei

e não sabia

naquele tempo abril era de noite
e na floresta havia luzes negras e línguas de relento
entre as fardas moribundas do luar e do vento
e havia noite muita noite sempre houve noite
aquela noite

até que uma vez a manhã nasceu belíssima
mas longe tão longe e tão morta de cansaço
que a noite ficou confusa

desde então que é tão inútil e breve essa manhã
tão desacreditada e distante

desde então que essa manhã forra de indiferença
as magras vontades desvanecidas
de quem esteve naquele tempo

e hoje mesmo em abril
parece de noite outra vez

in “Gondomar Económico”, Maio de 2010

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