O relatório do FMI não consegue evitar elogiar o progresso dos indicadores portugueses de saúde nos últimos trinta anos. Portugal não gasta demasiado comparando com os restantes países da UE, em percentagem do PIB. E os resultados são bons.
Bom, e as críticas? Estas nascem em parte da ignorância do país, mas por outro lado também porque estamos em crise e com a corda em localização cervical: vamos gastar menos? (dizem...)
a) há comparativamente médicos a mais e enfermeiros a menos. Ok, digam-me algo que eu não saiba. Há enfermeiros a menos, o papel da enfermagem nos cuidados primários está obviamente subaproveitado por razões várias, algumas até culturais. O número de médicos deve ter em conta que neste momento está a acontecer um número elevado de reformas e de entradas de novos médicos: os números estão a mexer depressa, e variando muito de especialidade para especialidade. A carta hospitalar creio estar a acontecer, especialidade por especialidade. A carta de cuidados primários deve ser feita e englobar ambas as profissões: enfermeiros e médicos. A opção pela articulação de cuidados entre as duas profissões não deve acontecer apenas e só porque um enfermeiro custa muito menos do que um médico.
b) a mensagem dos "médicos a mais" coloca sempre em questão a real produtividade da classe médica. Esta é difícil de medir tendo em atenção a heterogeneidade de funções. Comparar a produtividade dum ortopedista com a produtividade dum internista ou a de um imunohemoterapeuta não tem qualquer lógica. Números analizados em bruto tipo "x acontecimentos/ano a dividir por y intervenientes" não abona a favor da inteligência de quem faz estas contas. Por outro lado se um hospital for universitário (você disse o quê, universitário?) isso ajuda ou atrapalha? Uma linha de montagem ensina?
c) "Médicos a mais" pode infelizmente ser uma boa notícia, ao querer dizer ordenados mais baixos induzidos "de fora para dentro". E já se nota um pouco. Curiosamente, pelo facto de terem uma capacidade negocial inferior, isto já está a acontecer, com bem maior violência, nos enfermeiros, cujos salários à partida já não eram nada elevados.
d) a questão da produtividade - e como se conseguiram tão bons indicadores de saúde com tão má produtividade? - coloca em primeira página a opção de separar as águas e não permitir que profissionais de saúde trabalhem simultaneamente no universo público e no privado. Curiosamente quando este assunto é abordado só se fala dos médicos. Uma elevada percentagem de enfermeiros acumula funções nos dois mundos e isto não parece incomodar ninguém. Então, qual é o problema com os médicos? Por outro lado a separação das águas em algumas especialidades é minimamente possível?
e) no relatório do FMI mais se refere que Portugal tem um gasto privado com a saúde superior á média europeia. Resumindo, o português gasta muito com a sua saúde, de uma forma ou de outra. O sistema privado de saúde português é relativamente caro e existem em algumas especialidades, especialmente as cirurgicas, honorários muito altos que, colocando-se a questão da exclusividade, retirariam ao serviço público os melhores profissionais em várias especialidades cruciais, cujo nome me dispenso de enunciar. Para este busilis criado pelas leis de mercado não vejo solução fácil: o objectivo de um hospital público de referência não deve ser "ter cirurgiões vasculares" mas sim "ter os melhores cirurgiões vasculares", um exemplo ao calhas. I rest my case. De qualquer forma, a produtividade exige-se e mede-se, independentemente do status do profissional em questão, médico ou enfermeiro, o estar ou não em exclusividade. Uma hora que se trabalha deve valer os seus sessenta minutos e não pela exclusividade valerá obrigatoriamente mais.
f) tempos houve que se falava muito da mobilidade dos profissionais de saúde. Hoje nem por isso: estando o país a "fechar o interior", mandar gente "para lá" não parece fazer sentido a ninguém "dos que por nós pensam".
g) e as horas extraordinárias? Talvez seja importante explicar no que consistem. Acontecem horas extraordinárias médicas porque para determinadas funções não há profissionais suficientes, nomeadamente serviço nocturno, de fim-de-semana, de serviço de urgência. A alteração referida de passar o horário-base de 35 para 40 horas em nada resolve esta questão, nos médicos mais novos já ninguém faz 35 horas e porém... A hora chama-se extraordinária porque não acontece em horário normal. Percebe isto muito bem quem vive trabalhando só de 2ª a 6ª f e de dia. Os enfermeiros, a mais incompreendida das profissões da área da saúde, trabalham já de base por turnos, e mesmo assim muitas horas adicionais são necessárias. Que os médicos passem a trabalhar por turnos é obviamente sugerido - outra ameaça à remuneração... Claro que a formação médica e a cultura de grupo e de medicina partilhada e discutida assim vai desaparecer. E na página 24 o relatório do FMI acha que a hora extraordinária (qualquer, seja uma ou dez) deve receber um honorário extra de 15% apenas e só. Extraordinário! Três da manhã de domingo vale apenas 15% mais do que três da tarde de quarta-feira?
h) o afluxo exagerado às urgências é resolvido também explorando o tecto constitucional colocado às taxas moderadoras até... ao tecto, ou seja, sugerindo a duplicação do valor de 20 euros para 40. Que se diga que metade da população é isenta de pagamento de taxas moderadoras (é mesmo verdade?) não esconde ser isto mais um caso de dupla tributação levado ao exagero mais atroz.
i) finalmente sugere-se a resolução rápida da geriatrização das enfermarias hospitalares com a expansão rápida dos cuidados continuados, o que está a acontecer, não se sabe se com poupança de custos, não se sabe se com custos na saúde dos doentes. É que idosos vamos ser todos...
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