sábado, 23 de fevereiro de 2013

O relatório do FMI e 2013 - a Saúde.

O relatório do FMI não consegue evitar elogiar o progresso dos indicadores portugueses de saúde nos últimos trinta anos. Portugal não gasta demasiado comparando com os restantes países da UE, em percentagem do PIB. E os resultados são bons.
Bom, e as críticas? Estas nascem em parte da ignorância do país, mas por outro lado também porque estamos em crise e com a corda em localização cervical: vamos gastar menos? (dizem...)

a) há comparativamente médicos a mais e enfermeiros a menos. Ok, digam-me algo que eu não saiba. Há enfermeiros a menos, o papel da enfermagem nos cuidados primários está obviamente subaproveitado por razões várias, algumas até culturais. O número de médicos deve ter em conta que neste momento está a acontecer um número elevado de reformas e de entradas de novos médicos: os números estão a mexer depressa, e variando muito de especialidade para especialidade. A carta hospitalar creio estar a acontecer, especialidade por especialidade. A carta de cuidados primários deve ser feita e englobar ambas as profissões: enfermeiros e médicos. A opção pela articulação de cuidados entre as duas profissões não deve acontecer apenas e só porque um enfermeiro custa muito menos do que um médico.

b) a mensagem dos "médicos a mais" coloca sempre em questão a real produtividade da classe médica. Esta é difícil de medir tendo em atenção a heterogeneidade de funções. Comparar a produtividade dum ortopedista com a produtividade dum internista ou a de um imunohemoterapeuta não tem qualquer lógica. Números analizados em bruto tipo "x acontecimentos/ano a dividir por y intervenientes" não abona a favor da inteligência de quem faz estas contas. Por outro lado se um hospital for universitário (você disse o quê, universitário?) isso ajuda ou atrapalha? Uma linha de montagem ensina?

c) "Médicos a mais" pode infelizmente ser uma boa notícia, ao querer dizer ordenados mais baixos induzidos "de fora para dentro". E já se nota um pouco. Curiosamente, pelo facto de terem uma capacidade negocial inferior, isto já está a acontecer, com bem maior violência, nos enfermeiros, cujos salários à partida já não eram nada elevados.

d) a questão da produtividade - e como se conseguiram tão bons indicadores de saúde com tão má produtividade? - coloca em primeira página a opção de separar as águas e não permitir que profissionais de saúde trabalhem simultaneamente no universo público e no privado. Curiosamente quando este assunto é abordado só se fala dos médicos. Uma elevada percentagem de enfermeiros acumula funções nos dois mundos e isto não parece incomodar ninguém. Então, qual é o problema com os médicos? Por outro lado a separação das águas em algumas especialidades é minimamente possível?

e) no relatório do FMI mais se refere que Portugal tem um gasto privado com a saúde superior á média europeia. Resumindo, o português gasta muito com a sua saúde, de uma forma ou de outra. O sistema privado de saúde português é relativamente caro e existem em algumas especialidades, especialmente as cirurgicas, honorários muito altos que, colocando-se a questão da exclusividade, retirariam ao serviço público os melhores profissionais em várias especialidades cruciais, cujo nome me dispenso de enunciar. Para este busilis criado pelas leis de mercado não vejo solução fácil: o objectivo de um hospital público de referência não deve ser "ter cirurgiões vasculares" mas sim "ter os melhores cirurgiões vasculares", um exemplo ao calhas. I rest my case. De qualquer forma, a produtividade exige-se e mede-se, independentemente do status do profissional em questão, médico ou enfermeiro, o estar ou não em exclusividade. Uma hora que se trabalha deve valer os seus sessenta minutos e não pela exclusividade valerá obrigatoriamente mais.

f) tempos houve que se falava muito da mobilidade dos profissionais de saúde. Hoje nem por isso: estando o país a "fechar o interior", mandar gente "para lá" não parece fazer sentido a ninguém "dos que por nós pensam".

g) e as horas extraordinárias? Talvez seja importante explicar no que consistem. Acontecem horas extraordinárias médicas porque para determinadas funções não há profissionais suficientes, nomeadamente serviço nocturno, de fim-de-semana, de serviço de urgência. A alteração referida de passar o horário-base de 35 para 40 horas em nada resolve esta questão, nos médicos mais novos já ninguém faz 35 horas e porém... A hora chama-se extraordinária porque não acontece em horário normal. Percebe isto muito bem quem vive trabalhando só de 2ª a 6ª f e de dia. Os enfermeiros, a mais incompreendida das profissões da área da saúde, trabalham já de base por turnos, e mesmo assim muitas horas adicionais são necessárias. Que os médicos passem a trabalhar por turnos é obviamente sugerido - outra ameaça à remuneração... Claro que a formação médica e a cultura de grupo e de medicina partilhada e discutida assim vai desaparecer. E na página 24 o relatório do FMI acha que a hora extraordinária (qualquer, seja uma ou dez) deve receber um honorário extra de 15% apenas e só. Extraordinário! Três da manhã de domingo vale apenas 15% mais do que três da tarde de quarta-feira?

h) o afluxo exagerado às urgências é resolvido também explorando o tecto constitucional colocado às taxas moderadoras até... ao tecto, ou seja, sugerindo a duplicação do valor de 20 euros para 40. Que se diga que metade da população é isenta de pagamento de taxas moderadoras (é mesmo verdade?) não esconde ser isto mais um caso de dupla tributação levado ao exagero mais atroz.

i) finalmente sugere-se a resolução rápida da geriatrização das enfermarias hospitalares com a expansão rápida dos cuidados continuados, o que está a acontecer, não se sabe se com poupança de custos, não se sabe se com custos na saúde dos doentes. É que idosos vamos ser todos...

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O caso de assédio sexual no seminário do Porto que nestes dias foi notícia.

Quarta-feira foi notícia denúncia de uma situação de assédio sexual acontecida nos anos oitenta no seminário do Porto, sendo o protagonista o bispo Carlos Azevedo, ex-auxiliar de Lisboa e ultimamente colocado em Roma, e o denunciante o padre José Nuno, capelão do Hospital de S.João.
Hoje falei sobre esta história com três pessoas que muito prezo. Foram sempre diferentes as considerações e as conclusões. Vamos conversar um pouco...
 
O bispo Carlos Azevedo está eclesiasticamente morto, hoje por hoje. Um "caso" destes, acontecido há trinta anos, não se confirma nem se desmente. A definição de assédio sexual era outra nos tempos de Reagan e de Gorbachev. É estranho dizer isto, mas é verdade. Porém, esta caixa de Pandora ninguém a vai conseguir fechar, sendo uma palavra contra outra, ou pouco mais.
 
Apareceu nas televisões o bispo "incriminado" a declarar-se contra a pedofilia. O  veneno é óbvio e muito baixo, muito sujo. O que pode estar em causa é assédio homosexual entre adultos. O bispo Carlos Azevedo seria mais velho do que os seminaristas o mesmo número de anos que o meu pai é mais velho do que a minha mãe... A pedofilia não tem nada a ver com esta história, a questão do celibato dos padres sim, possivelmente, provavelmente, ou mesmo, até. Portugal é um país que hoje aceita o casamento homossexual, certo? Os homossexuais casam entre outras razões porque têm relações sexuais. Portanto, o celibato não é notícia...
 
O padre José Nuno é o capelão do meu Hospital. Fez uma denúncia, pelo que li, com vinte, trinta anos de atraso. Existe meia dúzia de coisas, de pessoas, que são realmente excepcionais no meu Hospital. O padre José Nuno é uma delas. O ser excepcional não é ser perfeito. É ser muitas coisas, com algumas destas coisas sendo muito boas. É ser fantasticamente humano. Temo muito pelo padre José Nuno. E não consigo explicar bem porquê.
 
Como em trinta anos não se consegue perdoar? Eu gosto muito do padre José Nuno. Portanto acredito nele. Portanto acredito, e com ele sofro, o facto triste sobre todos os factos tristes desta história, de o perdão não ter sido possível. É terrível a solidão dos justos. Temo pelo padre José Nuno porque, entre outras razões, ele está/é muito mais sózinho do que eu, já antes assim eu o via, agora ainda mais.
 
O meu padre José Nuno, eu sei que ele permitirá que eu assim o chame, publicou recentemente um livro sobre a morte nos hospitais, brilhante extensão da sua tese de doutoramento. Não comprei com medo do que podia encontrar no livro, perdoe-me, meu amigo.
 
Estou muito triste com tudo isto. Quem acredite em Deus precisará de ajuda agora como nunca antes precisou. Use-a, meu amigo, e em abundância.